Verosimilhanças

Como um funâmbulo da leitura volto a caminhar em equilíbrio instável sobre a corda bamba que Enrique Vila-Matas estende sobre as dezanove estações abismais que integram a cartografia do vazio do seu mais recente livro, Exploradores do abismo, que a Teorema acaba de publicar. Mas, ao contrário da minha primeira expedição em que me deixei ir por ali à deriva, perseguindo elipses e labirintos, em busca da realidade disfarçada na ficção, encaminho-me agora directamente para  o centro do vazio – porque é aí «no centro do vazio [que] há outra festa», segundo o verso de Roberto Juarroz citado por Vila-Matas – que se encontra no conto «Porque ela me pediu», em torno do qual se estrutura este livro profundamente vilamatiano que estilhaça as fronteiras da realidade e da ficção mostrando-nos como até a fantasia mais inverosímil pode ser domesticada através do filtro de metáforas apagadas da vida de todos os dias e, ao mesmo tempo, como a realidade mais verosímil pode ser vivida com a insolência da fantasia que cintila na ficção.

Expedição breve, mas que, ainda assim, permite descobrir que é ali naquela estação que dá pelo nome de «Porque ela não lho pediu» que se encontra o epicentro absoluto da verosimilhança. Vou instável mas ligeiro, primeiro, no encalço da personagem vilamatiana Rita Malú que viaja ao fundo do vazio, nos Açores, em busca do seu próprio fantasma e se enreda numa trama ficcional que se vai tornando verosímil graças às bifurcações das trajectórias das restantes personagens entre o lado de cá e o lado de lá da realidade – ou da ficção? E adiante descubro que essa mesma ficção se transfigura na mais verosímil realidade em que se adentra a escritora Sophie Calle quando decide protagonizar a ficção escrita por Vila-Matas. E, no final desta breve expedição, constato que tudo não passa, afinal, de um embuste para onde fui arrastado num jogo ficcional aberto a todas as possibilidades e onde a verdade e mentira se imbricam num processo vilamatiano de «desfamiliarizar uma experiência e dela se apropriar como ficção».

Mais vilamatiano que isto não há. Quem disse que este Vila-Matas já não era ele mesmo mas outro? O próprio? A verdade da mentira, portanto.

6 comentários

  1. Quem disse que este Vila-Matas já não era ele mesmo mas outro? O próprio? A verdade da mentira, portanto.

    Por causa do Vila-Matas andei a reler «O Outro que Era Eu» do Ruben A.

  2. E eu ando a ler, reler e tresler “El paseante solitario”, de Sebald, que a Siruela fez a fineza de me oferecer.

  3. Não conheço esse outro que habita em Ruben A. Apenas o outro Borges a quem, segundo, o ortónimo, acontecem as coisas.

  4. Walser e Sebald, almas gémeos com quem me cruzei nos últimos dias. «En todos los caminos me ha acompañado Walser siempre. Sólo necesito suspender un día el trabajo cotidiano, y veo al lado, en alguna parte, [su] figura inconfundible […] que en ese momento mira a su alrededor», leio em «El paseante solitario», de Sebald, que me foi oferecido pelo acaso.

  5. Os recomiendo un libro que acaba de reeditarse, se llama El viento ligero en Parma. Es un libro que recoge buena parte de las teorías que el propio Vila-Matas sostiene sobre la literatura. en cuanto a “Exploradores del abismo” he de decir que un magnífico libro, en la línea trazada por el autor, pero que continúa en buena medida las obras cumbres, esto es, El mal de Montano y El doctor Pasavento.

  6. Gracias por tu complicidad Tomás. Y en una proxima viaje hasta Sevilla voy a ver si puedo sentir también ese viento ligero de Parma.


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