Todos hotéis são por natureza lugares transitórios. Alguns são hotéis de passe para amantes ocasionais. Outros são hotéis passagem para transeuntes nocturnos roçando abismos por cruzar. E outros há, ainda, que são protagonistas de histórias em que a realidade supera a ficção, como um tal hotel Cervantes, situado numa rua do centro de Montevideu que aparece em dois contos de Julio Cortázar e Adolfo Bioy Casares, e que serve de pretexto para a crónica que Vila-Matas me envia para publicação no próximo número da Atlântica.
Lembro-me de há cerca de três anos me ter escapado por um dia desde Colónia do Sacramento, onde acompanhava a minha mulher num seminário de história, até Montevideu, e de ter errado pelo centro à procura de um velho cinema que por ali havia numa rua arruinada nas imediações da despovoada Plaza Independencia – a Soriano, entre Convención e Andes – e de ter ladeado a fachada espectral, sombria, discreta, banal de um hotel perdido no meio de edifícios feios e de despojos depositados na calçada pela vizinhança, que ostentava um grande letreiro onde se podia ler o nome de Hotel Cervantes. Ignorava ainda o desejo de Vila-Matas de, transitoriamente, aí se hospedar um dia quando for a Montevideu e, sobretudo, o mistério de la puerta condenada do quarto 205, protagonista do conto homónimo de Cortázar e do outro escrito por Adolfo Bioy Casares, Un viaje ou El mago inmortal, que me chegam agora ligados pela misteriosa porta. Ou não fosse, afinal, para isso que servem as portas dos quartos de hotéis transitórios.
Se minimamente suspeitasse dos mistérios que se escondiam naquele segundo andar onde, parece, também Jorge Luís Borges se hospedou, uma noite, com a sua mãe, teria certamente cruzado o balcão da recepção e, quem sabe, subido ao quarto 205 e, noite adentro, escutado as vozes dos passageiros da noite que pernoitavam no quarto ao lado. Mas não. Distraído dos abismos que uma qualquer rua banal pode oferecer ao transeunte ocasional, passei pelo umbral do hotel sem entrar.
Procuro no google e confirmo que o hotel Cervantes ainda lá está e que, por isso, é de admitir que um dia possamos ler ainda um conto vilamatisiano em que se escutarão, seguramente, os gemidos de amantes ocasionais vindos do outro lado do misteriosa porta, ou não fosse Vila-Matas um coleccionador nato das existências alheias, sobretudo quando essas existências roçam um qualquer abismo que se abre numa noite de insónias no outro lado de um umbral obscuro, ao mesmo tempo que no piso de baixo ressoa uma milonga de Gardel, também ele, tantas vezes, um passageiro da noite montevidiana.
Nas minhas andanças através de uma cartografia pessoal onde se bifurcam livros, filmes e discos, tenho cruzado outros hotéis de passagem onde numa qualquer dobra da página, de faixa ou de fibra digital ousei subir a um qualquer quarto 205 e aí pernoitar, escutando, depois, noite adentro, o murmúrio de personagens desaparecidas por horas do mundo lá fora, talvez à procura, também elas, de uma qualquer porta de passagem camuflada atrás de um velho armário com espelho que dê para outras vidas. Lembro-me de alguns dos 342 motéis de estrada onde Nabokov (e depois Kubrick) faz pernoitar Lolita e o seu velho amante Humbert, cenários transitórios de cerimónias secretas e rituais privados oferecidos ao voyeurismo do leitor. E no armário onde guardo os velhos LPs e os recentes CDs e DVDs lá está ainda o Hotel California, dos Eagles, onde o viajante se deita sob «mirrors in the ceiling, pink champagne on ice»; e o Desert Song Hotel, onde Nicholas Cage se encerra para se embebedar até à morte, em Adeus Las Vegas; e o quarto de banho do Bates Motel, onde Hitchcock engendra o assassinato brutal de uma jovem secretária, em Psico. E em dobras de páginas, que de repente me vêm à memória, aquele hotel de Michigan que surge no conto de Borges, As metamorfoses de Shakespeare, onde um homem sem rosto oferece ao escritor argentino a memória de Shakespeare. E o Costa Verde Motel Tulán, de A noite da iguana, de Tennessee Williams, cenário de amores depressivos; o obscuro quarto de Los adioses, de Juan Carlos Onetti, onde tuberculosos se encontram para desdenhar da morte; a «pensão de má morte», em Budapeste, onde se hospedou o protagonista de O Mal de Montano, de Vila Matas; e os hotéis baratos de Ciudad Juárez, cenários dos crimes horrendos de 2666, de Roberto Bolaño.
E como a realidade supera quase sempre a ficção, também o hotel El Molino, em Buenos Aires, evocado por Laura Restrepo, numa recente edição de Babelia, onde a escritora colombiana recorda as noites clandestinas de sexta-feira ou sábado que aí passou, depois de esperar numa longa fila de casais muito jovens, de estudantes sem dinheiro, abraçados ou de mão dada, conversando em voz baixa como se estivessem numa bicha para o cinema, à espera de um quarto para desaparecer do mundo lá fora, por horas, suspendendo o tempo num território transitório no meio da obscuridade da ditadura. Conta Laura Restrepo que quis saber desse hotel transitório, se ainda lá estava na rua Salguero, e por isso, pediu a uma amiga que lá fosse. E resultou que sim, que ainda lá estva, embora também tenha sido vítima de um daqueles upgrades desconcertantes que procuram modernizar-nos as recordações.
E do lado de cá do mar, hotéis de passagem de escritores desesperados, atravessando como sombras os abismos deste mundo. O hotel Suède, na rue Vaneau, em Paris, e o hotel Troisi, em Nápoles, onde Pasavento procura dar-se como desaparecido, no romance de Vila-Matas. E outros hotéis parisienses já desaparecidos, vítimas de upgrades, de reconversões ou de demolições, como os hotéis habitados por Joseph Roth, cuja obra ando a ler: o Foyot, na rue Tournon, junto ao Jardin du Luxembourg, onde já tinha morado Rainer Maria Rilke, e que Roth abandonou quando os escombros da demolição já se amontoavam por detrás da porta condenada do seu quarto; o tétrico hotel Florida, no Boulevard Malesherbes; e o miserável hotel de la Poste. E o albergue Principautés Unies onde morou Hannah Arendt. E em Zurique, o hotel onde às vezes Robert Walser se ocultava num quarto a que chamava a Câmara de Escrita para Desocupados e aí, sob a luz crepuscular de um candeeiro de petróleo, deixava que a sua mão indecisa o conduzisse pelos territórios do lápis, cujo traço o empurrava lentamente para o desaparecimento, para o eclipse, mimetizando-se para não ser descoberto.
Mas talvez o mais absoluto hotel de passagem de que ouvi falar seja aquele em Port Bou, onde se abrigou Walter Benjamin em fuga para Lisboa, onde não chegaria nunca porque as suas asas incertas de borboleta nocturna falhariam no último momento, incapazes de o levarem para fora do pequeno quarto onde se hospedara na última etapa da sua fuga para Lisboa. Também aí havia uma porta condenada por cujas frestas adivinhava a lenta irrupção da manhã, que já não chegaria a tempo de iluminar a sua solidão irredutível de ter sido sempre estrangeiro em todos os hotéis de passagem da sua vida e de não ter tido nunca nada, a não ser a pasta preta pousada em cima da mesa de cabeceira, onde guardava os últimos «labirintos de tinta embebidos nos seus cadernos». E também aquele quarto, não de um hotel mas de um edifício de dois andares, em Kierling, Viena – outrora um sanatório – derradeira passagem de Kafka.
E já agora o meu hotel pessoal de passagem, o Excelsior, na rua de Cujas, em Paris, onde havia também um quarto misteriosamente parecido com o do conto de Cortázar, com uma porta condenada tapada por um armário que deixava ouvir não os gemidos de amantes de passagem, mas o murmúrio de um casal de exilados chilenos que ali estavam também de passagem. Quando vou a Paris, subo sempre a rue de Cujas que liga o Boulevard Saint Michel à rue d´Ulm e, ao passar em frente da porta de entrada, espreito dissimuladamente para o hall onde se encontra o balcão da recepção, agora modernizado, depois de um upgrade remodelador que o dotou de um pequeno salão com amplas vitrinas que dão para a rua. Contudo, não se modernizam as recordações cegas da minha vida suspensa naquele pequeno hotel de abrigo para transeuntes sem pátria nem dinheiro. E recordo, então, o quarto, pequeno, no terceiro andar, com uma pequena janela de guilhotina que dava à esquerda para uma açoteia e para mais nada, porque se abria para um muro sobre o qual espreitava um inútil pedaço de céu quase sempre cinzento; havia uma pequena estante de madeira onde coleccionava livros que falavam de revoluções por fazer, um armário onde guardava parcos haveres, uma colcha escura de textura áspera sobre uma cama estreita onde deitava em noites de vigília a saudade, uma lâmpada florescente no tecto, uma cortina azul escura no cubículo de banho, uma chávena onde derramava água apenas tépida colorida pelas saquetas de chá verde. Com um golpe de google fico a saber que também o quarto foi vítima de um upgrade e a porta condenada substituída por uma parede de alvenaria que já não deixa escutar os murmúrios do quarto vizinho. E concluo, então, que aquele Excelsior que ali está já não é o mesmo onde transitoriamente me encerrei nas minhas paredes interiores, mas que nem por isso deixarei de continuar a olhar dissimuladamente através da sua porta sempre que suba a rue de Cujas.