Ainda hoje a paisagem à volta de Mértola é «árida, coberta de lousas tristes e nua de arvoredo». Mas para a alcançar já não é preciso subir o Guadiana a favor das marés, ou bolinando contra ventos traiçoeiros em frágeis embarcações que traziam brocados e especiarias desde Tunis, Siracusa ou Alexandria e regressavam, depois, com cargas de carne fresca, couros e pelicas, frutos secos e lingotes de prata e chumbo. Mértola era, nesse tempo, o último porto do Mediterrâneo. Depois, com o correr do tempo, a importância do rio foi esmorecendo até ao último estertor já no século XX, quando a campanha do trigo secou as encostas desbravadas e os vapores, sem carga, morreram nas margens.
Hoje, há boas estradas que subtraem Mértola ao isolamento. E há, sobretudo, o Campo Arqueológico de Mértola que desde há trinta anos vem fazendo um trabalho notável, arrancando a terra às memórias de uma vila esquecida. Durante décadas o CAM escavou, investigou, recuperou, publicou, abriu museus, transformando radicalmente Mértola num oásis de património cultural devolvido à comunidade e aos visitantes, com fortíssimo impacto no desenvolvimento económico local. Ontem estive em Mértola, com a Graça, a convite do Cláudio Torres, que abriu mais um espaço de investigação, o Centro de Cultura Islâmica e do Mediterrâneo, que visa a aproximação, o diálogo intercultural entre as margens mediterrânicas. Belíssimo espaço, a Casa Amarela, no coração histórico da vila, com centro de documentação, um pequeno auditório, sala de exposições, pátios interiores para tertúlias… e, sobretudo, um projecto de investigação que, num tempo de medo e desconfiança relativamente ao que vem do sul, visa construir pontes culturais num exercício de respeito pelas diferenças religiosas, com efeitos políticos a prazo. O que poderá Mértola contra a «democracia da bomba», perguntava o Cláudio? Muito, achamos todos os que estivemos lá, ontem. Desde logo, pelo que Mértola representa como memória cosmopolita, último porto do Mediterrâneo, onde se falava grego, hebraico, latim, árabe ou romance, lugar de passagem e de encontro de comerciantes, aventureiros, mercenários e religiosos vindos de muitos lugares. Depois, porque, hoje, quando nos encontramos entregues, perdidos na imanência do mundo, sem remissão, Mértola mostra que há outras possibilidades de retraçar o passado, desarquivar a história, actualizando a sua lição de forma a recriarmos a nossa experiência no mundo. Hoje somos coagidos de muitas maneiras, arrebatados no torvelinho dos media, do simulacro, da mesquinhez, da desistência. O próprio pensamento está em crise, porque ameaçado sempre pela provisoriedade. Por isso, Mértola é tão mais importante nestes dias, porque nos incita e excita com o que nos oferece: o campo Arqueológico, com o Bairro Almóada do séc. XII, a mesquita, hoje igreja matriz, o museu islâmico, a oficina de tecelagem e, todo o centro histórico desenhado sobre o pequeno promontório rochoso que desce sobre o Guadiana num labirinto de ruelas, escadas, onde neste fim de semana se realiza o 4º Festival Islâmico.
Ontem, no primeiro dia, ainda se faziam os derradeiros preparativos com uma inquietação saudável, cheia de sorrisos e boa disposição para receber os primeiros visitantes que a partir do meio da tarde, indiferentes ao calor, se perdiam já entre o branco das casas e a paleta de cores fortes do Norte de África, entre os odores intensos de especiarias e os primeiros acordes de música árabe-andaluz, num ambiente onírico que me evocou um livro [O perfumista, de Joaquim Mestre, Oficina do Livro) que li há pouco tempo, e cuja acção decorre em Almorim, uma vila imaginária nas margens do Guadiana, que não é outra senão a Mértola dos primeiros anos do século passado, povoada de profetas e malteses, visionários e contadores de histórias.
Esta a nova Mértola, cosmopolita por quatro dias, ressuscitada ao longo de décadas pelos jovens espanhóis e franceses que trabalham com o Cláudio e que retraçam novas figuras de esperança numa comunidade envelhecida. Esta a Mértola que não recusa a modernidade exposta na Galeria de Arte Empório Metal através das peças de ourivesaria de Nádia Torres. A Mértola onde por estes dias, no primeiro andar desta galeria, surgiu um belíssimo salão de chá, decorado com motivos de origem muçulmana, onde não falta o chá de menta e petiscos das mil e uma noites, como o estifado (carne com passas e canela) que comi à noite com um grupo de amigos onde para além do Cláudio também estava o Borges Coelho que fora homenageado pela manhã, na Casa Amarela. Eis Mértola, marcada pela excentricidade, no sentido literal e metafórico do conceito, isto é, a que está fora do centro, e que procura escapar à vontade de coacção e à estabilização institucional, agindo, criando novas figuras num país que parece com medo de existir. Mértola, o Cláudio e todos aqueles que aí retraçam diariamente novas figuras de esperança, esses não têm medo, seja ao ritmo islâmico durante os quatro dias que dura o festival, seja na investigação histórica acolhida no novo centro de estudos, seja através das peças desenhadas pela Nádia que junta tradição e modernidade. O caminho para Mértola todos conhecem. Façam-se, por isso, à estrada. Sejam malteses. Prefiram a acção à coacção.
Maio 18, 2007
Categorias: das cidades nervosas . . Autor: João Ventura . Comments: 1 Comentário