Retóricas do 11-S

 

Foi há seis anos, mais os dezoito dias que passaram desde o último 11 de Setembro, que a queda das Torres Gémeas, em Nova Iorque, inaugurou de forma tragicamente espectacular o novo milénio, trazendo consigo o regresso da História depois do seu «fim» proclamado por Francis Fukuyama e de um período em que se assistiu a uma espécie de «greve dos acontecimentos» – segundo a fórmula de Baudrillard – numa Europa e América sem guerras desde 1945. O espectáculo de fogo mortal, visível em tempo real em todo o planeta, superaria todas as ficções, tornando-se na grande metáfora de um mundo com anemia moral e alimentado pela hipocrisia e pela felicidade engarrafada, mas irremediavelmente ferido a partir do 11 de Setembro de 2001. A vida nova depois do 11-S, simultaneamente maculada e redentora, tem dado origem a uma repetição dos discursos sobre o acontecimento, visando a sua «legibilidade», à luz de interesses variados e, muitas vezes, antagónicos, legitimadores da resposta ocidental à «barbárie» de um Islão desfigurado, perseguida pelo «profeta electrónico» Bin Laden, cujas aparições acontecem na única realidade do nosso tempo, a televisão. Que caminhamos agora entre os vestígios de uma catástrofe cuja onda de choque continua a repercurtir-se no mundo já o sabemos. Só não sabemos é se a catástrofe ficará por ali, sepultada junto ao ground zero nova-iorquino, agora irremediavelmente ameaçado pelo novo skiline mercantil a construir no mesmo lugar ou se continuará, como uma onda de choque imparável, a desmoronar cidades e vidas longe daquele epicentro. Haverá ainda redenção possível depois de tanta ruína? Se, num estado próximo do sonambulismo, W. G. Sebald caminhasse depois do 11-S sobre os mesmos tijolos calcinados, talvez voltasse a dizer: «Demasiados edifícios ruíram, amontoou-se demasiado entulho, são intransponíveis os sedimentos e as moreias» [Os Anéis de Saturno, Teorema, p. 172]. 

Mas será que o 11-S, nas suas causas e efeitos, constituiu uma cesura radical na narrativa moderna? Ou não terá sido antes mais um episódio de esbanjamento trágico do potencial redentor da humanidade? Foi, seguramente, um regresso ao fundamentalismo religioso incentivado pelo «choque das civilizações»[Samuel Huntington, O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, Gradiva, 1999] ou «choque dos preconceitos» – como corrigiu Edward Said [Orientalismo, Cotovia, 2004] -, marcado pela tendência para a «teologização do político» e para a «instrumentalização política da religião» [Alain Badiou, Circunstances, Éditions Léo Scheer, 2004] tão presente nos discursos maniqueístas dos protagonistas desta tragédia global. Seja como for, cesura ou continuidade histórica, neste tempo de ebulição catastrófica, ganham adeptos as teorias salvícas que vão hipostasiando um «nós» ocidental contra um Islão desfigurado pela violência fundamentalista, fazendo-nos, assim, roçar um abismo cujo fundo negro desconhecemos. Multiplicam-se, por isso, os discursos que visam a «legibilidade» do 11-S à luz dessas mesmas teorias que conduzem a um perigoso resvalar para territórios de liberdade condicionada no mundo ocidental, refém, sempre, da maldição moderna do petróleo.

Eis a retórica dominante na efeméride negra do 11-S, como se o acontecimento apenas pudesse ter «legibilidade» através de um discurso legitimador da resposta americana enviesada, não tanto contra o terrorismo, mas contra um «inimigo providencial» [Carl Schmidt, Théologie politique, Gallimard, 1969] , em cujas fileiras se contam já milhares de vítimas inocentes, iraquianas sobretudo, mas também soldados das forças internacionais, enquanto deixa os sequazes de Bin Laden à solta no Afeganistão e no Paquistão. Ou, num sentido oposto, nos discursos negacionistas de uma certa esquerda, anacrónica, e também ela maniqueísta, só que invertendo os polos do bem e do mal. 

E qual retórica da literatura sobre o 11-S? Tem sido ela capaz de retraçar o acontecimento dando conta da consternação do «mundo ocidental» pós 11-S? No epicentro da catástrofe, quatro escritores americanos publicaram romances sobre a vida depois do 11-S. «Ela falou da torre […] claustrofobicamente, o fumo, os corpos desmembrados, e compreendeu que podiam falar daquelas coisas somente entre eles» – escreve Don DeLillo em Falling Man, um romance circular a várias vozes : a de um sobrevivente do atentado, a de sua mulher e de um terrorista. E Claire Messud, em The Emperor’s Children: «aquele imenso buraco parecia una extensão da sua própria dor». E Jay McInerney, em Good Life. E Jonathan Safran Foer, em Extremely Loud & Incredibly Close/Extremamente alto & incrivelmente perto [Quetzal, 2007].

Claro que mesmo nesta literatura estamos ainda diante de visões hipostasiadas de um «nós» que exclui os outros, enraízadas na experiência ocidental do acontecimento, visões parciais, portanto, mas que nem por isso deixam de constituir outras formas de retraçar o acontecimento, preferindo a ficção à interpretação, a experiência individual do acontecimento à sua explicação alegórica, a sua subjectivação discursiva à sua «legibilidade» compulsiva, sem cair na tentação didáctica, mas, como cabe à literatura, expondo-nos destinos tiritantes que poderiam ser os nossos, num mundo caminhando alegremente para um «pôr-do-mundo» cada vez mais desvanecido e alheado [Peter Sloterdijk, Weltfremdheit/Alheamento do mundo, a publicar pela Relógio d´Água ainda este ano].

Interrogo-me sobre o que escreveria Kafka no seu diário se tivesse presenciado todo o espectáculo da derrocada das Torres Gémeas. É que no dia 1 de Setembro de 1911, precisamente noventa anos antes, a propósito de uma colisão entre um triciclo e um automóvel ele referira-se, premonitoriamente, a um «pedalar totalmente despreocupado» que me me faz pensar na despreocupação dos nova-iorquinos antes da dupla colisão dos aviões com as torres. O mundo pedalando despreocupadamente para o abismo. E depois o espectáculo do fogo mortal.

Amor sólido

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Poderá o pensamento continuar a pensar até ao fim da vida? Ou, à medida que um pensador original avança na idade, mais não faz do que produzir variações do seu tema fundador? Proust dizia que há apenas um único grande livro que cada escritor escreve ao longo da sua vida. Talvez isso se aplique ao grande livro do amor escrito por André Gorz e sua mulher Corinne. Talvez o suicídio que ambos, ontem, cometeram seja a variação final e esmagadora do grande livro do amor que escreveram durante os cinquenta e oito anos que estiveram juntos, coisa rara num tempo em que a instantaneidade das coisas se tornou no novo modo de vida de uma sociedade onde até o «amor [é] líquido» [Zygmunt Bauman]. Não o amor de André e D. :«Tu vas avoir vingt-quatre-deux ans. […] et tu es toujours belle, gracieuse et désirable. Cela fait cinquante-huit ans que nous vivons ensemble et je t’aime plus que jamais. Je porte de nouveau au creux de ma poitrine un vide dévorant que seule comble la chaleur de ton corps contre le mien», escreveu André Gorz no seu último livro dedicado a Dorine [Lettre à D. Galilée, 2006], cuja presença «fut décisive dans la construction d´une oeuvre dont la visibilité ne porte qu´un nom alors qu´elle fut celle d´un couple, le fruit d´un long dialogue

Mas uma obra que, ao contrário da ideia proustiana do livro único, sempre perseguiu a inovação epistemológica, adaptando um pensamento com raízes na Escola de Frankfurt à experiência da actualidade, como mostra o seu derradeiro livro filosófico [L´Immatériel, Galilée, 2003], onde explora o potencial de liberdade, de subversão e de emancipação que existe na «economia do imaterial», a despeito das desesperadas tentativas de controlo do novo mundo virtual. Deixa, implícita, uma interrogação. Poderá, ainda, a sociedade recuperar o domínio sobre a economia? Como tentativa de resposta antecipa o surgimento de uma «dissidência numérica» no seio do «capitalismo cognitivo» emergente a partir da crise de um capitalismo que já não pode sobreviver sem a linkagem interactiva entre pessoas, empresas, serviços, consagrando a irredutibilidade das ligações, das conexões. 

Daí a possibilidade potencial da crise que provém sempre do acidente, da desligação. É que – permitam-me o pensamento – se o desligar constituiu a marca da modernidade, nomeadamente na ruptura com a tradição medieval, o carácter compulsivo do ligar/desligar parece encerrar, hoje, todo o «poder constituinte» da experiência «pós-moderna». E, logo, toda a possibilidade de gerar tensionalmente a dissidência, mesmo que o visível seja, ainda, a requisição da experiência pelo continum controlador da técnica [Martin Heidegger, «Construir, Habitar, Pensar», in Conferências y Artículos, Barcelona, Serbal, 1994].

A arca de Joseph Joubert

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Poderá um nome de um escritor sem livro continuar a cintilar muitos anos depois da sua morte, como uma espécie de Bartebly que renunciou não à escrita mas à publicação de um livro que ele não poderia nunca escrever sem encontrar a nascente de todos os livros?  «Atormentado pela maldita ambição de colocar um livro inteiro numa página, uma página inteira numa frase e essa frase numa palavra», esse escritor foi, seguramente, Joseph Joubert (1754-1824), escritor sem livro, arquétipo de todos os autores dos livros por vir. E, actualizando a sua atitude moderna, contra-ponto radical daqueles que, hoje, ousam publicar sem nunca terem escrito um livro, uma página, uma frase, mas que, ainda assim, encontram sempre uma editor da moda onde depositam a vaidade e a verborreia «literária» perante a histeria tranquila do novo povo do códice [de Da Vinci].Joubert escrevia muito, apesar daquela espécie de maldição. Anotações em pequenos cadernos, em papéis soltos, fragmentos de um livro por vir a cuja preparação dedicou toda a sua vida. Mas seria um projecto nunca cumprido, porque – dizia – não reuniu as condições para escrever esse livro ideal. Um dia Chateaubriand perguntou-lhe para quando esse livro: «Ainda não o posso fazer – respondeu -, ainda não encontrei a fonte que procuro. Mas se encontrar essa fonte, ainda terei mais motivos para não escrever esse livro que gostarias que eu escrevesse». Parece que Joubert nunca encontrou essa da fonte da escrita que lhe permitiria escrever a «belíssima obra» que segundo os seus amigos lhe estava destinada,  e que na sua busca se tornou incapaz de perseguir a vulgaridade literária que outros alimentavam, sacrificando o seu livro para procurar a fonte secreta donde brotavam todos os livros por escrever.  «Foi, por isso [segundo Blanchot] um dos primeiros escritores inteiramente modernos, preferindo o centro à esfera sacrificando os resultados à descoberta das suas condições e escrevendo, não para acrescentar um livro a outro livro, mas mas se tornar senhor do ponto de onde lhe parecia que saíam todos os livros e que, uma vez encontrado, o dispensaria de os escrever».  Mas embora sem a pretensão de publicar,  Joubert escrevia ao sabor do que lhe caía dos dias, pensamentos dispersos, anotações de um caminhar seguro em direcção a um grau zero da literatura, «fora das coisas civis e na pura região da Arte», como se fosse já – disse Blanchot – «um autor sem livro, um escritor sem escrito».Joubert nunca encontrou o espaço adequado para as suas ideias: «As minhas ideias! Custa-me construir a casa onde alojá-las». Outros, porém, encarregar-se-iam disso depois da sua morte. Chateaubriand que publicaria, numa edição ainda privada, reservada aos amigos, os seus «papiers de la malle», com o título Recueil des Pensées de M. Joubert, mais tarde revisto e aumentado por um sobrinho de Joubert e reeditado como Pensées, Essais, Maximes et Correspondanee de J. Joubert. Também Paul Auster responsável pela versão inglesa, com o título The Notebooks of Joseph Joubert.

 

O livro por vir

 

Foi comentador de Kafka, Musil, Proust, Herman Broch, Henri James. E, talvez, tenha influenciado discretamente Derrida e Deleuze. Dele se disse, ainda, ser mais levinassiano que o seu amigo Emmanuel Levinas. E que «procura[va] pensar judaico como Hölderlin procura[va] pensar grego». Daí o seu salto judaico como tentativa de esquecimento e de desaparecimento, de expiação e de purificação diante da catástrofe da razão moderna. Depois de Theodor Adorno escreveu: «Pensa e age para que Auschwitz nunca mais se repita». E acusou: «No silêncio de Heidegger sobre o Holocausto reside o seu erro irreparável». Eis Maurice Blanchot que me fez descobrir o escritor Joseph Joubert, aquele que nunca escreveu um livro e que se perderia, precisamente, na busca secreta e lúcida do seu livro por vir.

Conta Enrique Vila-Matas em Doctor Pasavento que um dia lhe perguntaram: «Para onde vai a literatura?». «Dirige-se para si mesmo, para a sua essência, que é o desaparecimento», respondeu imperturbável, Blanchot. Talvez, por isso, escutar, ainda, o enigmático canto das sereias «tão semelhante ao dos homens que faz suspeitar da inumanidade de todo o canto humano», e deixarmo-nos arrastar para a escrita desse fabuloso livro por vir incessantemente procurado por Joubert. Blanchot nasceu faz hoje cem anos.

Políticas da literatura

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Nalguns textos anteriores aqui inscritos (Da literatura Sebald: viagem entre ruínas), tenho procurado interrogar o papel da literatura enquanto expressão necessária da consternação de um mundo «tão cheio de falsas representações, tão fútil, onde tudo se desumaniza ou desaparece e que inclusive a própria História se desvanece», como escreveu W. G. Sebald, em Os Anéis de Saturno.  Mas que literatura «ante a decadência implacável da ambição literária, a convergente ascensão de desengano, a verborreia e a crueldade insensível como assuntos normativos da ficção»? questionava Susan Sontag. Que literatura perante este mal endémico que corrói, hoje, as estantes das livrarias?

Demasiadas interrogações que vêm alimentar um debate em múltiplas direcções, actualizando a questão da definição do papel da literatura, questionamento que poderá constituir não apenas um sinal de indecisão acentuada, mas também uma aproximação à complexidade processual da literatura. Ante o espectro da síndrome do código […de Da Vinci] e das suas múltiplas reprises, poderá a literatura, ainda, continuar a produzir uma interrogação sobre o mundo, revelando os territórios da dominação que se escondem atrás da vida de todos os dias e, assim, cumprir o seu papel na sobrevivência da memória? Ou será cada vez mais a literatura uma mercadoria que se expõe nas livrarias à espera de um leitor passivo e pouco exigente, uma raça de «analfabetos altivos» que «em vez de ler o melhor que se produziu nas diferentes épocas, se resume a ler as novidades, afundando-se cada vez mais no próprio lodo», como antecipou Schopenhauer?  Na verdade, o que cada vez há mais nas livrarias são apenas livros e pouca literatura, contribuindo para o simulacro de uma cultura que se esvanece perante a histeria tranquila que invade os escaparates livreiros, transformando o leitor num consumidor passivo, marcado pela fraqueza e pela impotência face à mercadoria exposta ali por «todos esses homens de negócios que editam livros, directores de departamento, líderes de mercado, trapezistas do marketing e licenciados em economia», como denuncia Enrique Vila-Matas nesse desassossegante libelo contra os inimigos do literário que é O Mal de Montano.

«A rasura total da literatura» ou «o horror do estilo», segundo João Barrento ou o «realismo urbano total», como classificou Miguel Real esta literatura achatada, e quase sempre vazia, que espelha o mundo que aí está e que muitos chamam de pós-moderno, correspondendo à «historicidade imanente» de que falava Theodoro W. Adorno.  Uma literatura que não é mais do que a manifestação epifânica de um mundo carregado de sombras ocultas sob a fogueira da técnica e do mercado que nos atrai como borboletas de asas trémulas. A literatura perdida no meio dos livros e nós doentes da literatura como mariposas errantes no meio deles. Estará a «arte de contar em vias de se perder», como afirmou Walter Benjamin? E não será isso uma consequência da crise da experiência moderna, onde o fragor da técnica emudeceu a fala dos homens e dos escritores apanhados pela mesma teia da contingência? Paul Auster afirma na sua Trilogia de Nova Iorque que «o caso é que as nossas palavras já não correspondem ao que se passa no mundo. […]  Pouco a pouco [as] coisas fragmentaram-se, espalharam-se, caíram num caos. E, contudo, as palavras permaneceram as mesmas», tornando-se incapazes de dar lógica à trama da vida.

Que outra via, então, para a literatura? Isto é, entre a mercadorização, a alienação e o engagement será possível ainda uma literatura capaz de, para além dos propósitos do autor, perturbar o universo do sensível, os modos como percepcionamos o mundo, autonomizada, mas sem cair no vazio ou no ensimesmamento.  Como contrariar a profecia hegeliana sobre o devir da «prosa do mundo» que ao perder o seu sentido teológico perdeu também a sua literariedade, tornando-se num «objecto verbal laborioso e inútil», como já a sentia Jorge Luís Borges? Trata-se, agora, de resolver a oposição radical entre a passividade e a actividade do leitor, como propõe Jacques Rancière, em Politique de la littérature. Que novas figuras de esperança, sem cair na tentação panfletária, poderá ainda a literatura convocar neste crepúsculo das ideologias? Diz Rancière que «a força da arte é, precisamente, sair das figuras, das formas esperadas, para lhes dar um outro modo de presença». Não estamos diante de indivíduos, mas de personagens de papel – como escreveu Roland Barthes – através de cuja figuração estética o mundo impõe uma presença que apenas a distância nos permite abarcar. Mas «personagens com inteireza», segundo Lídia Jorge, capazes de dar à trama da vida uma outra lógica que lhe escapa e que só a literatura pode inventar, agitando éticas e estéticas conformistas. Uma literatura como simulação da vida, como escreveu Bernardo Soares no Livro do Desassossego: «Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa». Ir por aí, portanto, ultrapassando o velho paradigma modernista da distinção entre uma literatura engagée e uma literatura indiferente, mas recusando «uma espécie de pedagogia política voluntarista da arte» que não poderá constituir o contraponto ao vazio ou ensimesmamento literários.

Coloca-se, então, o problema da relação da política com a literatura, com a arte em geral. Qual o compromisso actual da literatura? Caberá à literatura e à arte produzir conhecimentos ou representações para a política, falhando a sua natureza ociosa? Ou, pelo contrário, não residirá o seu potencial emancipador, o seu fogo, precisamente, na sua aparente ociosidade? «Um romance não é significativo por ser, por exemplo, instrutivo, e expor-nos um destino estranho, mas porque esse destino estranho, com o fogo que lhe é atribuído, nos dá um calor que nunca somos capazes de conservar para o nosso próprio destino. O que empurra o leitor para a novela é a esperança de poder abrigar a sua própria vida tiritante face a uma morte sobre a qual se lê», e «não é por comunicar conteúdos, mas por trazer à luz da maneira mais límpida a sua dignidade e a sua essência que a a literatura se mostra eficaz», escreveu Walter Benjamin em momentos distintos.  Esta a essência da literatura, isto é, a sua capacidade de escapar a toda a determinação essencial, a toda a acção estabilizadora, diz Blanchot. Também Rancière afirma que a literatura  «produz ficções ou dissenções, agenciamentos de relações de regimes heterogéneos, mas não os produz para a acção política, mas sim no seio da sua própria política, criando um duplo movimento que por um lado conduz à sua própria supressão, e por outro, aprisiona a política da arte na sua solidão, recortando o espaço do sensível e da redistribuição das relações entre a actividade e a passividade, o singular e o comum, a aparência e a realidade, que são os espaços-tempos do teatro ou da projecção, do museu ou da página lida».

Ora, é nesta reconfiguração da experiência que a literatura poderá, então, suscitar novas formas de subjectivação política e nesse sentido levar à superação do binómio política/literatura a cuja indistinção Rancière dá o nome de ética. Ou como dizia Lídia Jorge a propósito do seu último livro, uma literatura «com um assomo político», capaz de dar trama à vida de todos os dias. E de «corrigir a fortuna que é cega, com a alegria da natureza que é previdente», acrescentaria Agustina Bessa-Luís. Porque toda a ética da literatura reside no modo como ela se dá a ler. Ou, nas palavras de Giorgio Agamben, «como tu falas, isso é a ética».   

A cada um o seu lugar?

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Argumentando ainda a favor da criação de uma chinatown, em Lisboa, Maria José Nogueira Pinto demarcava-se, na semana passada, no Diário de Notícias  daqueles que acham que o mercado tudo regulará, mesmo que isso conduza ao desaparecimento do comércio tradicional. Escrevia, então, que «na sua lógica pura, um defensor acérrimo do mercado apostará na progressiva substituição de todo este comércio por simpáticas e prestáveis lojas chinesas»; e que, obviamente, não era isso que defendia. Mas e a criação de uma chinatown, «opção, relativamente à imigração chinesa de forte vocação para o comércio, em várias cidades do mundo, cidades dignas desse nome, todas com a sua chinatown»? Que pensar desta proposta, aparentemente, segregacionista, da qual o próprio António Costa parece desconfiar? Representará isto o desejo de pôr cada um no seu lugar, conforme a um multiculturalismo que atribui a cada homem, a cada grupo, um posicionamento fixo em função dos seus atributos? Ou estaremos perante uma tentativa enviezada de recentramentro de actividades comerciais, marcada apenas pela necessidade de salvaguardar a identidade cultural de uma zona histórica? É que, não sejamos hipócritas, o problema da «lojas chinesas» não está na nacionalidade dos proprietários, tão pouco na sua actividade comercial, mas sim na qualidade dessa actividade, e na própria qualidade dessas lojas que praticam um tipo de comércio anacrónico, feito para cidades feias, sujas e degradadas. Ora, se queremos revalorizar e revitalizar a Baixa, é óbvio que essas lojas terão de ir para outro lado. Tratar-se-á, então, de um problema que deve ser pensado no âmbito de uma política de valorização do património cultural e do seu uso social numa zona histórica, onde não cabem, parece-me, as «lojas chinesas» ou quaisquer outros enxertos estranhos e desqualificados. Tratar-se-á de aplicar os mesmos princípios que deveriam excluir da Baixa as esplanadas de plástico e outras manifestações de mau gosto comercial. Nunca, porém, como tentativa de descentramento artificial, em nome de um falso multiculturalismo, de uma comunidade e de uma actividade exercida por essa comunidade, como forma de criar um novo bairro etnográfico visitável por turistas, como parece defender a responsável pelo gabinete Baixa-Chiado. Tanto mais que a criação de uma chinatown pode ser perigosa porque susceptível da sua guettização. Não será difícil imaginar que as mesmas  famílias que já trabalham sem horários nem direitos sociais, e vendendo a preços baixíssimos produtos fabricados na China em regime de «dumping social», logo se mudariam para esse bairro, fragilizando as relações entre os de dentro e os de fora. Lembra o socióliogo polaco Zygmunt Bauman [em Confiança e Medo na Cidade, Relógio d´Água, 2006] que homogeneizar «os bairros, e reduzir depois ao mínimo inevitável todo o comércio e comunicação entre eles, é uma receita infalível para avivar e intensificar o desejo de segregar e de excluir» (p. 46), originando novas patalogias de posição provocadas por recentramentos artificiais que podem fazer deslizar para a guettização. Daí, a necessidade desta questão ser pensada sem a hipocrisia do politicamente correcto, exercendo a autarquia de Lisboa o seu dever de regulação política, requalificando a Baixa sem cedências a interesses instalados, chineses ou outros, mas sem que daí resulte uma qualquer deriva segregacionista.

Sob suspeita (III)

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Será que, no caso Madeleine, a aproximação mediática à verdade está condenada a formas de processamento do acontecimento acomodadas a uma tipologia narrativa à maneira de um thriller melodramático servido diariamente a espectadores frívolos, contempladores obscenos de um drama alheio em cena num teatro da crueldade? E poderiam as duas hipóteses de investigação perseguidas ter tido outra abordagem mediática, que a não a da sua serialização narrativa assente na incerteza e na fragmentação da notícia, de forma a manter o público sitiado face ao desenrolar deste thriller melodramático? Mais do que responder ao acontecimento representando-o nas suas várias possibilidades, visando a formação de uma opinião pública informada, os media vêm respondendo a este caso através da construção de uma espécie de micro-narrativas fragmentárias e, muitas vezes, contraditórias, de um acontecimento encoberto tanto pelo segredo de justiça como pelo ruído mediático que foi crescendo à sua volta.

Escutámos, primeiro, uma narrativa que visava a deslocalização do acontecimento, afastando-o da Praia da Luz, no rasto da tese de rapto promovida por uma campanha mediática sem precedentes. E, depois, escutámos a narrativa da morte de Madeleine às mãos dos McCann, ainda que acidentalmente. Mas ambas as narrativas, nos seus múltiplos segmentos processados mediaticamente como um thriller melodramático, respondem ao acontecimento de forma semelhante, isto é, promovendo a incerteza, o improviso, a imprevisibilidade, a expectativa que é preciso alimentar diariamente.

Mas, e poderia o jornalismo responder de forma diferente a este acontecimento. É que faltando informação, o thriller só poderá ser alimentado através do tentativo, do improviso, do provisório, sob pena dos media ficarem silenciados. E isso é contrário à sua vocação. Daí o arriscar agora na tese da morte de Madeleine, cuja coreografia da crueldade, venham os pais a revelar-se responsáveis ou vítimas, não nos deixará indiferentes.

Sob suspeita (II)

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Porque hoje julgo saber mais do que quando escrevi o post anterior sob o caso Madeleine, não tanto sobre a investigação mas sobretudo sobre o discurso dos media neste, cumpre-me actualizar a reflexão e esclarecer alguns contornos do meu próprio posicionamento face à forma como os media têm vindo a responder a este acontecimento. Isto porque da leitura do post anterior talvez tenha ficado a impressão de que toda a abordagem mediática do caso estaria a ser feita em termos da sua banalização lúdica, visando manter sitiadas as audiências. E se verdade que houve uma tabloidização do acontecimento, importa reconhecer, por outro lado, que houve media que procuraram responder de modo expedito ao acontecimento, dando cobertura mediática a outras possibilidades de investigação, mesmo que politicamente incorrectas, como a tese da morte da criança.

E esta relativização do meu discurso metajornalístico a propósito deste caso não é contraditória com aquilo que me atrevi antes ensaiar sobre esta matéria. Antes clarificador. Não é claro no post anterior a distinção entre a causa e os efeitos deste torvelinho mediático para cujo vórtice fomos empurrados ao longo dos quatro meses que vai durando este vendaval, incitando e excitando o nosso voyeurismo. Ora, a causa primeira que levou a que o circo mediático se instalasse no triângulo Praia da Luz/Portimão/(e agora) Rothley, foi a «convocatória» da Sky News pelos McCann mesmo antes de terem chamado a polícia, respondendo a uma estratégia que, como viria depois a constatar-se, visava promover até à exaustão a tese única do rapto de Madeleine, silenciando outras hipóteses que, sabe-se agora, a investigação sempre colocou. E era fácil de pegar na tese do rapto. Era a que mais nos confortava apesar de tudo. E para os media que embarcaram na tese também era a que naquele momento respondia melhor a objectivos de audiências. O que já era na altura pouco claro, e agora ainda menos, era a que interesses inconfessados [ler a este propósito artigo em El Pais de ontem]  respondiam alguns media britânicos que não se desviavam da tese única de rapto, mesmo  quando começaram a surgir indícios que obrigariam ao questionamento do que até então era dado como adquirido. E, sobretudo, porque razão o governo britânico contrariou a neutralidade que agora afirma adoptar. Daí a pergunta: e se houve aqui um monumental logro orquestrado pelos McCann, manipulando consciências, e contas bancárias, quem foram os cúmplices? A que interesses respondiam?

Ora, cúmplices não foram seguramente os media portugueses que, num primeiro momento, como todos nós, afinal, embarcaram na versão do rapto. E ainda menos aqueles que, a partir de certa altura, começaram a processar outras hipóteses, não se vergando ao politicamente correcto, mesmo que para isso tivessem de se adentrar por territórios movediços, arriscando participar numa coreografia da crueldade contra os McCann; mesmo sitiando o espectador dentro de uma ficção serial fabricada e processada através de uma encenação mediática sempre em busca do inesperado que nos foi transformando em espectadores frívolos, contempladores obscenos num teatro da crueldade. E dessa tentação poucos escaparam, correspondendo, afinal, aos modos instalados de mediatização da realidade segundo a tipologia serial televisiva onde cada capítulo acaba sem resolução, remetendo a continuação para o dia seguinte.

Mas seria, ironicamente, esta voracidade jornalística que não consentiria o silenciamento dos novos rumos da investigação. Afinal, não obstante a rasura dos media a que vimos assistindo, neste caso, por coincidência ou não entre os interesses economicistas das administrações e a procura da verdade, parece ter existido algum jornalismo que, embora com alguma perversidade, conseguiu apanhar o acontecimento de modo expedito. E se me encontro agora mais desconfortado relativamente aos novos contornos deste caso que parecem sugerir a morte da criança – desfecho que será altamente perturbador -, isso deve-se à acção desse jornalismo que não calou as novas possibilidades de uma investigação judicial politicamente incorrecta mas em busca da verdade, mesmo que essa verdade venha a revelar-se de uma enorme crueldade e demasiado incómoda para os tais interesses inconfessados.  Apesar das construções ficcionais arriscadas e, às vezes, condenáveis deste caso, parece ter havido, então, jornalistas que arriscaram apanhar o acontecimento de modo expedito. Esses, seguramente, não estão sob suspeita.

Sob suspeita (I)

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A constituição da experiência contemporânea é cada vez mais determinada pelas máquinas mediáticas que nos dão a ilusão de estar em todo o lado ao mesmo tempo. Quer queiramos quer não, estamos imersos na actualidade «fabricada» pelos media contemporâneos que tendem a produzir uma espécie de delírio colectivo universal em torno de acontecimentos processados mediaticamente em função de inconfessados interesses que já pouco têm a ver com uma noção ética do jornalismo, como se a comunicabilidade mediática se tivesse tornado insustentável. A experiência contemporânea mediatizada constitui-se já não em função do acontecimento em si, mas através da construção de uma ficção jornalística que visa a identificação gratuita do público com o acontecimento despolitizado e abordado em função das convulsões dos seus protagonistas. Vistas assim as coisas, o jornalismo hoje responde ao acontecimento não para para lhe dar tonalidade expressiva e retraçá-lo racionalmente, mas para nos introduzir nele como espectadores obscenos cujo ponto de vista é sempre incitado, e excitado, por formas mediáticas demagógicas e manipuladoras da opinião pública, que originam as várias e contraditórias patologias de posição que somos coagidos a adoptar, marcadas por uma ilusão paranóica de poder sobre os protagonistas do acontecimento. Lemos e vemos as notícias que nos são oferecidas com a ilusão de penetrar na intimidade do outro como se momentaneamente nos fosse concedido o direito de tudo julgar sem que para isso tenhamos de ser confrontados com a nossa responsabilidade moral. Por isso, a banalização lúdica da violência, da crueldade, a exposição da intimidade, a reivindicação divertida da futilidade diariamente servida nas televisões.

Ora se há acontecimento que, mais do que qualquer outro, corresponde a esta questão metamediática, sobretudo pelo que contém de banalização lúdica de um acontecimento trágico, é o caso Madeleine McCann, a criança inglesa desaparecida na Praia da Luz. O acontecimento tem vindo a ser apresentado como uma ficção continuada que é preciso alimentar diariamente através de um voyeurismo incitado e excitado por uma retórica que não visa tanto o esclarecimento público, mas tão só a comunicação inconsistente de fragmentos de uma ficção «fabricada» para encher noticiários sem qualquer respeito pelos protagonistas reais. O objectivo é sitiar o espectador dentro de uma ficção pueril fabricada e processada através de uma encenação mediática sempre em busca do inesperado – porque o imprevisível, o insólito, o macabro é mais informativo -, que visa a comunicação pela comunicação e exclui a racionalidade argumentativa, apesar das sucessivas convocatórias de «especialistas» – criminalistas, psiquiatras,  psicólogos «faciais» – que ajudam a «encher» os noticiários perorando sobre isto e aquilo que desconhecem, perante a mente curto-circuitada de alguns pivots. Na tentativa descontrolada de chegar primeiro ao acontecimento, de revelar aquilo que mesmo a polícia ainda não sabe (?), alguns jornais e televisões vão fabricando a sua ficção, intuindo culpados em cada inquirição, surprendendo evidências onde não existem provas, confundindo jornalismo com investigação judicial (na semana do interrogatório aos McCann houve um jornal que adiantou na primeira página três causas diferentes de morte da criança). «Supostamente» e «alegadamente», escudam-se – como se nesta retórica coubesse toda a sua responsabilidade ética. «Jornalismo de causas», disfarçou o director de um semanário de referência num debate televisivo na tentativa de se esgueirar à acusação de cumplicidade num ainda hipotético logro. E porquê apenas esta «causa» quando, de acordo com um relatório recente da Amnistia Internacional, anualmente são traficadas  no mundo 1,2 milhões de crianças? E já agora, porquê, também, o tratamento de excepção concedido aos McCann? E todo o dinheiro que há por aí para pagar custos milionários a advogados? Que outros interesses inconfessados?

Duas hipóteses de desfecho se colocam agora. A primeira é a de termos sido todos vítimas de um monumental embuste com a cumplicidade dos media, caso venha a provar-se a responsabilidade do casal McCann no desaparecimento da criança. Um embuste, diga-se, friamente orquestrado por duas pessoas que após a tragédia teriam promovido a mais mediática «coreografia da crueldade» de que todos nos tornámos espectadores, primeiro, respondendo com a nossa solidariedade e, depois, com uma incitada contemplação obscena do acontecimento. 

E, no entanto, durante meses, os media alimentaram até à exaustão a tese do rapto e da angelização dos pais – apesar de irresponsavelmente terem deixadas sós três crianças num apartamento de férias. Agora agitam as águas num sentido contrário, apostando na demonização dos progenitores, criando um irredutível vazio em seu redor. Mas – segunda hipótese -, e se forem inocentes? E se assim for, quem responderá por esta outra coreografia da crueldade?

Entretanto, nós espectadores frívolos, incitados, excitados por um zapping generalizado sobre os acontecimentos, levados por um jornalismo que parece ter enlouquecido, já sem espaço nem tempo para pensar, porque agora, para os media,trata-se apenas de responder à urgência da actualidade, sob pena de falhar as audiências.

Anotações nas margens

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Quando escrevo sobre um livro não pretendo escavar na terra das palavras procurando significados ocultos sob uma pretensa imanência textual que fez, faz escola nas universidades e em alguma crítica profissional iluminista que na sua «mania interpretativa» – que já Pessoa denunciava – visa tornar transparentes os significados escondidos através de uma axiomática explicativa. Contra isto já respondeu James Joyce escrevendo um livro ilegível que, segundo ele, «manteria ocupados os professores durante séculos com os enigmas de Ulisses». Esse não é o caminho, o método que tenho perseguido aqui, sobretudo nos retratos de momento que vou traçando, embora, às vezes, reconheço, quando o que escrevo se confunde com a recensão crítica, me deixe levar também por alguma tentação interpretativa. Mas o que procuro é, isso sim, um estilo, uma retórica, subjectiva claro, de anotações nas margens, que mais do que uma hermenêutica, se assume como uma tentativa de aproximação do texto à vida, exaurindo, sem escapatória, tanto os seus sentidos como inventando outros.

Que fazer quando tudo arde?

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Pode o pensamento voltar a pensar? E o que é o pensamento? Pensar é uma forma de agudização, a forma mais intensa de discernimento, isto é de expressar um sentimento. Por isso, o pensamento e a linguagem que o expressa, embora objectivos, nunca são emocionalmente neutros. Já Kant dizia que quando se entregava a uma tarefa fazia-o todo o seu calor. E isso nos distingue dos répteis que são frios. Então pensar hoje com calor é discernir outras possibilidades para o mundo. Isto é, encontrar cesuras, fendas no pensamento totalitário que rege quer o politicamente correcto quer os fundamentalismos de todo o tipo que marcam a experiência contemporânea, aprisionando um pensamento que parece já não ser capaz de pensar emocionalmente o mundo, incapaz de retraçar as figuras que a história vai arquivando. Caídos na imanência dos dias que correm acomodamo-nos aos lugares fixos, somos cada vez mais espectadores indiferentes, contempladores insensíveis de um mundo sem remissão, de onde a política, contra todas as aparências, parece ter desertado. O primado da economia sobre tudo o resto é uma consequência do nihilismo moderno que aprisionou os homens no labirinto do mercado. O torvelinho da técnica, irmã da economia, tudo arrasta no seu vórtice, originando novas patologias de posição, desenraizadas, transitórias, etéreas. A política há muito que deixou de ser um caminho para a paz e a plenitude para se transformar numa estratégia guerreira de ascensão ao poder. O ambiente enlouqueceu perante a obscena indiferença do mundo. «Que fazer, [então], quando tudo arde?». Talvez «pôr o pensamento a pensar», desenhando mapas e contramapas do porvir do mundo.

Da (dis)posição de Amos Oz

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Regresso ainda à História de Amor e Trevas, de Amos Oz já aqui comentada, para me posicionar subjectivamente face à matéria narrada. E será possível qualquer outra patalogia de posição que não seja subjectiva? Pois se é da (dis)posição do mundo que decorre a nossa própria (dis)posição que, por natureza, só pode ser subjectiva. Ora também os livros têm disposições construídas a partir da matéria deixada à disposição dos seus autores. Muito particularmente este livro autobiográfico de Oz cuja matéria foi arrancada às pedras dispostas em Jerusalém.

Um livro «muito proustiano», portanto, carregado de «cheiros, sons, imagens que ajudaram a lembrar» – como disse Amos Oz numa entrevista ao Ípsilon, em 9 de Março passado -, arrancados às pedras de Jerusalém. Curiosamente, também a tradutora do livro para português, Lúcia Liba Mucznik – uma judia askenazita que vive há muito em Portugal – andou a «passear nas ruas com o nome dos profetas, naquela Jerusalém dos comerciantes», o que torna a versão portuguesa deste romance duplamente autobiográfica, pois autor e tradutora partilham o mesmo sentimento de continuidade face à residualidade dos lugares. Até porque a memória é sempre residual, acolhe-se nos lugares, nos vestígios que Oz involuntariamente vai exumando contra o esquecimento, como a «madalena de Proust». Por isso este romance autobiográfico, uma «mémoire» como o classifica o próprio Oz, não pode ser neutro relativamente à matéria que narra. A sua insustentável objectividade decorre desde logo do facto do autor se encontrar marcado pela afecção da sua experiência posterior – o livro é escrito quase cinquenta anos depois dos acontecimentos centrais que narra -, o que lhe impôs naturalmente o exercício do juízo e da tomada de posição face ao vivido no passado. Ora é justamente essa subjectividade do discurso autobiográfico que confere autenticidade a uma História, narrada segundo a perspectiva da posição adoptada pelo autor. Sendo que a posição aqui é a de alguém que não se constitui como um narrador indiferente, mas como um protagonista empenhado em construir uma versão empenhada de um sionismo moderado. Diminuirá isto o livro? Claro que não. Antes oferece aos leitores a visão de um israelita que encarnando a velha utopia sionista dos askenazitas fundadores de Israel gostaria de viver numa terra habitada por dois povos, como prova o seu posicionamento no movimento Peace Now que ajudou a criar. Mas falhada por várias vezes a ocasião de paz, é a catástrofe que vai serpenteando nessa «terra prometida», agora sob a forma de uma muralha de ódio. Poderá este livro, que foi muito bem recebido em Israel, contribuir para quebrar a solidão irredutível dos dois povos? Até porque – e no livro isso percebe-se bem – os judeus jamais quererão regressar à sua condição de párias errantes num mundo que os repudiou e os palestinianos jamais abandonarão a sua terra mesmo que ela se vá transformando cada vez mais numa prisão de altos muros.

Esta a (dis)posição de Amos Oz [também comentada aqui e  aqui] que afecta a minha própria (dis)posição face à matéria narrada.

À beira do abismo

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«O que escreves?, perguntaram-me há um ano. Depois do Doctor Pasavento, vivia numa permanente sensação de caminho enclausurado, pois sentia que havia chegado ao final de um certo percurso e que diante mim se abria um abismo. Escrevo o título de um livro, respondi. O título era Exploradores do Abismo. Nos dias que se seguiram, começaram a surgir uma série de relatos relacionados com o que sugeria esse título. O livro inteiro é a exploração desse abismo. E, como o mesmo título indica, ocupa-se de histórias protagonizadas por seres à beira do precipício, seres que se entretêm com essa fronteira, estudando-a, investigando-a, analisando-a. Os exploradores são, obviamente, uma metáfora da condição humana. São optimistas e as suas histórias, no geral, são as das pessoas comuns que, ao ver-se à beira do precipício, adoptam o estatuto de expedicionário e sondam no plausível horizonte, indagando o que pode haver fora daqui, ou no mais além dos nossos limites». Caídos na imanência, entregues ao mundo sem remissão, é aí, contudo, que terão de encontrar as novas forças para explorar abismos e retraçar a realidade naquelas zonas obscuras onde a ficção não entra. Este o propósito denunciado por Enrique Vila-Matas que parece querer assim suspender, pelo menos por agora, a temática metaliterária (Bartleby, Montano e Pasavento), e obsessiva, dos seus últimos livros, para concentrar-se em torno de assuntos mundanos. Exploradores del abismo [Anagrama]o seu «livro más vilamatiano, justamente porque no está a la sombra de nadie» – como disse o próprio Vila-Matas -, sai esta semana em Espanha, assinalando o regresso do autor ao conto, género breve dos seus primeiros livros. Trata-se de uma travessia fragmentária através dos territórios de um quotidiano vazio habitado por personagens aparentemente derrotadas da vida mas que as circunstâncias transformam em solitários expedicionários à procura da fórmula para exconjurar a realidade.  Regressados da verdadeira vida que é a ficção precipitam-se no abismo que é, muitas vezes, a realidade. Daí a atracção kafkiana pelo abismo experimentada por seres que, vivendo na mais absoluta rotina quotidiana, são inesperadamente obsequiados com epifanias que os transformam em expedicionários de mundos, de vivências nunca experimentadas. «Fuera de aquí, tal es mi meta», eis a radical auto-consciência que alimenta o propósito vertiginoso deste livro, talvez o único movimento possível para quem explora os abismos da vida através de uma «escrita hóstil e mesquinha com a exuberância», como a classificou o crítico mexicano Álvaro Enrigue, mas cedendo a uma certa lógica surrealista convocada agora sob os auspícios do seu admirado Raymond Roussel, como confessou Vila-Matas em entrevista recente.

Preparados para roçar o abismo? A edição portuguesa está prometida para breve, na Teorema. Entretanto, aqui fica La Modestia:

«Llevo muchos años ejerciendo de espía casual en el autobús de la línea 24 que sube por la calle Mayor de Gracia, en Barcelona. Tengo en casa un archivo de gestos, frases y conversaciones escuchadas a través del tiempo en ese trayecto de autobús, y hasta creo que podría escribir una novela tan infinita como aquella que quería hacer Joe Gould sobre Nueva York, pues he robado y registrado todo tipo de frases sueltas, conversaciones extrañas, disparatadas situaciones. Un modesto delincuente, por cierto, parece haberse enamorado últimamente de esta línea de autobús. Le llaman –ya es muy conocido entre algunos pasajeros– el ladrón del 24. En cuanto sube al autobús, aquellos pasajeros que le conocen advierten a gritos a los incautos: “¡Cuidado, cuidado, que entró el ladrón del 24!” La escena es siempre conmovedora y tiene grandeza y hasta algo de épica popular, y a mí me recuerda, salvando todas las diferencias, una película que vi de niño en la que la gente de los barrios bajos se movilizaba para estrechar el cerco de un asesino de niñas. Al ladrón del 24 le han detenido unas quinientas veces ya, pero siempre queda en libertad y regresa al autobús, donde es muy famoso. No parece interesarle una línea distinta, ni otro autobús. Le debe de encantar –como a mí me pasa– sentirse un habitual de esa línea, o tal vez le apasiona simplemente repetirse… Se parece en algo a mí: los dos robamos en esa línea de autobús. Claro que él roba carteras y yo me limito a capturar frases, rostros, gestos… Tengo reunidas en mi archivo frases de todo tipo oídas, a través del tiempo, en este autobús que me conduce desde hace años del trabajo a casa, y viceversa. Obviamente, hay algunas frases que son mejores trofeos de caza que otras. Una de ellas es la que le oí decir en cierta ocasión a una mujer que iba sentada detrás de mí en la parte trasera del autobús: “Del inglés y del francés me acuerdo, pero el swahili lo he olvidado por completo”. Me pareció una frase muy sofisticada para decirla en la línea 24. Al volverme, vi que eran dos monjas las que viajaban detrás de mí. Las dos habrían vivido en Africa y eso seguramente lo explicaba todo, pero la frase sigue pareciéndome bastante sofisticada. En otra ocasión, también memorable, un joven le dijo de pronto a otro, cuando ya iban a bajar, en voz muy alta, muy enfadado, y todo el autobús se enteró: “Que sea la última vez que te lo digo: mi madre es mi madre. Y tu madre es tu madre. ¿Queda claro? ¿Me has entendido?” Parecía muy grave el problema entre los dos. Me quedaron ganas de bajarme con ellos y averiguar cuál era el drama. Recuerdo muy especialmente, entre otras muchas frases oídas y anotadas: “Le regalé unas magnolias y no me lo perdonó nunca”. Y esta otra: “La felicidad está en el martirio”. Y ésta “Si ganas dinero antes de los cuarenta años, estás perdido”. Todas están anotadas, con la correspondiente fecha. Tengo un dossier que tumba de espaldas, una información grandiosa sobre el mundo del autobús de la línea 24. Un día escuché a una mujer contarle a su marido que la luna no es lo que pensamos: “No es un satélite natural de la tierra, sino un inmenso planetoide hueco, diseñado por alguna civilización técnicamente muy avanzada, y colocado en órbita alrededor de la tierra hace muchos siglos”. Anoté cuidadosamente todo esto y también lo que le dijo el marido, que tenía cara de idiota (y también esto lo anoté, me refiero a lo de la cara de imbécil): “La luna es la luna y basta”. Bonita frase la del idiota, algunas veces la digo, me gusta decirla: –La luna es la luna y basta. Nadie sabe por qué digo eso, nadie sabe que procede de mis escuchas de autobús. La vida en el 24 forma parte de mi archivo más íntimo. Hasta el día de hoy siempre tuve la impresión de que todo lo que ocurría en esa línea me concernía directamente. El archivo –como mi vida– se ha ido haciendo grande y complejo. Y no es extraño, porque hubo siempre, en ambos campos –autobús y vida–, una gran cantidad de cosas para anotar. Hubo tantos gestos, personas, tantas frases… Sin embargo, hace una semana iba concentrado en mis pensamientos y no espiaba nada. Hay muchos días, sobre todo últimamente, en los que, no sé por qué, pero descanso de todo esto. Me olvido de que soy un ladrón de frases de autobús. El lunes pasado era uno de esos días. Pero de pronto pasó algo bien imprevisto. Me encontraba de pie en el asfixiante autobús repleto, iba apoyado distraídamente en una de las barras de la plataforma central, cuando una mujer que hablaba por su móvil dijo detrás de mí: –Voy a bajarme ahora, en la estación de Fontana. Tengo treinta años, pero no sé si los aparento. No soy ni guapa ni fea. Llevo un abrigo gris. Bueno, nos vemos. Hasta ahora. Viajaba de espaldas a mí, de modo que no le podía ver la cara, a menos que diera dos pasos (imposibles) para ponerme delante de ella, o hiciera un gesto muy forzado con la cabeza pero que, con tanta gente alrededor, habría quedado poco natural. Aquel “no soy ni guapa ni fea” me llegó al alma. Era una frase que había oído mil veces, pero que ahora escuchaba con intensidad diferente. Me dejó completamente preocupado. ¿Se puede realmente ser algo intermedio? ¿Qué podía haber ocurrido en la vida de aquella mujer para que se valorara ella tan poco a sí misma y no tuviera problemas en formularlo en voz alta? ¿Le gustaba ser modesta? ¿Lo era simplemente y no había que darle más vueltas a todo aquello? ¿O tal vez no era nadie y ni siquiera llegaba a modesta? Me pareció desazonante que alguien se resignara a tanta grisura. Vista de espaldas, era bajita, vestía totalmente de gris y hasta la negra cabellera parecía que se le estuviera volviendo gris, llevaba una bolsa de Zara que habría resultado un dato para identificarse más útil que aquel “no soy ni guapa ni fea”. Me planteé seguirla cuando se bajara en Fontana y ver con quién se encontraba, entrar de lleno en el comienzo de una novela real. Pero estaba yo llegando demasiado tarde a casa y no tenía tiempo para seguirla por ahí. Por otra parte, jamás en mi vida había seguido a alguien por la calle y no me veía para nada haciéndolo. Tu espacio es el del autobús, pensé. Y eso me ayudó a reprimir mi idea de bajarme. Pensé también en el libro sobre Gérard de Nerval que estaba leyendo y me vino a la memoria una cita conmovedora: “Yo no he visto jamás a mi madre. Sus retratos se perdieron o fueron robados. Sé solamente que se parecía a un grabado de la época, un grabado de la escuela de Prud’hon o de Fragonard y que podía titularse La Modestia”. ¿Era aquella mujer, toda vestida de gris, como la madre de Nerval? Pero, ¿podía yo saber cómo era la madre de Nerval si ni siquiera éste lo sabía? Po-día, en cualquier caso, tratar de ver cómo era la mujer que había hablado por el móvil. Sentía mucha curiosidad por ver si realmente no era ni guapa ni fea. Espere pacientemente para al menos verle la cara. Cuando el autobús se detuvo en Fontana, la mujer se volvió bruscamente hacia mí y comenzó a abrirse paso hacia la salida. La vi en un perfecto primer plano. Un rostro de ojos rasgados y verdes, muy bello, castigado por la tristeza y la modestia, y diría que por la desesperación. De pronto, nuevamente me llegó la tentación de descender del autobús e ir tras ella, averiguar con quién había quedado. Descendió del autobús allí en Fontana y me quedé temiendo que en la calle Mayor de Gracia su belleza se actualizara a cada instante, según el aspecto del rostro de los otros. Me di entonces cuenta de que hasta me sentía algo celoso de ella. Era una mujer gris, de una modestia cautivadora. Me quedé allí como un imbécil, dentro del autobús, viendo cómo, ya en la calle, se perdía entre la multitud que caminaba Mayor de Gracia arriba. Aún me quedó tiempo, mientras el autobús arrancaba, para ver cómo se iba cruzando con todo tipo de transeúntes y posiblemente les ofrecía a cada uno su mejor.» [in Enrique Vila-Matas, Exploradores del Abismo, Anagrama, 2007]  

… gestos, pessoas, frases, anotações do que cai da insubstancialidade vazia dos dias. E, no entanto, mesmo num autocarro qualquer, e sob qualquer máscara, às vezes, há epifanias. 

Pela estrada fora

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Nova Iorque, Denver, São Francisco, Nova Orleões, San Joaquin Valley, México, eis a cartografia de um romance onde se concentram as memórias de uma certa paisagem americana na ressaca do pós-guerra e no limiar da Guerra-Fria. Prosa fluída sobre a América, o jazz, a juventude, a liberdade, «On the Road», romance que afirmou Jack Kerouac como fundador da «beat generation», faz por estes dias cinquenta anos, mas ecoa ainda num certo imaginário que fomos construindo, muitos de nós, a partir da sua leitura. Também eu, que li aos dezassete anos esse livro, tive um tempo em que me fiz, não à estrada, mas aos comboios que levavam ao norte da Europa, fugindo de um país de adolescência e ingenuidade perdidas e onde até os beijos eram vigiados, perseguindo países artúricos que ficavam no final do trajecto. «Só pode ser o fim do mundo se avançarmos», já tinha lido em Rimbaud cujo apelo segui. Paris, Copenhaga, Estocolmo… uma errância europeia em vésperas de 74. Um único livro na mochila, precisamente o road book de Kerouac que lia enquanto esperava pelo próximo comboio sob o orvalho das manhãs frias, tendo como companheiros apenas Sal Paradise e Dean Moriarty, com quem andava à deriva.

Assim li «Pela Estrada Fora», numa edição da Ulisseia que ainda guardo, anotada a lápis. E embora depois tenha esquecido o livro, durante muito tempo a minha representação da América foi a que a Sal me ofereceu: os arranha-céus de Nova Iorque, o pôr do Sol vermelho atrás das montanhas, a imensidão do deserto, poços de petróleo na linha do horizonte, o vento embalando os campos de algodão, as águas barrentas do Mississippi, casas com jardim, beatas corroendo o chão de estações de comboio, o «odor devasso de uma grande cidade», São Francisco brilhando como uma jóia na escuridão da noite, jazz tocado às escondidas nos bares das cidades suburbanas…

«As únicas pessoas autênticas, para mim, são as loucas, as que estão loucas por viver, loucas por falar, loucas por serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que não bocejam, mas ardem, ardem, ardem como fabulosas grinaldas amarelas de fogo-de-artifício a explodir», confessa Kerouac no romance. Uma justificação para a aventura, para o desvario, para o desregramento dos sentidos que havia de levar à escrita do livro em 1951 (mas que seria publicado em 1957), num ritmo alucinante alimentado a café e ao som do jazz improvisado, como se fosse um Proust «só que mais rápido», como ele gostava de afirmar.  O livro foi dactilografado num parágrafo único, sem pontuação num rolo de trinta e seis metros de comprimento que o próprio Kerouac manufacturou juntando 13 folhas de papel com três metros de comprimento cada uma, coladas com fita-cola e recortadas depois para que pudessem entrar na máquina. «Um único e magnífico parágrafo, de vários quarteirões, rodando, como a estrada em si», diria Allen Ginsberg.

Depois do sucesso e das polémicas suscitadas pelo livro, Kerouac deixou de ver a estrada, deambulando apenas pelos atalhos de uma América que perdera toda a inocência e donde, tal como os seus companheiros de estrada, também ele desertaria: «Perdoei toda a gente, desisti, embebedei-me», eis o destino que ele próprio já adivinhava para si. Morreu em 1969, aos 47 anos, talvez porque já não suportasse mais ser o ícone de uma geração onde não se revia, sem responder à pergunta feita no romance: «Para onde ides vós, América, no vosso automóvel a cintilar pela noite fora?», eis a pergunta a que Kerouac não soube responder. Nem nós saberemos, já que o torvelinho americano tudo parece arrastar num vórtice que enlouquece a própria história e não já chega fazermo-nos à estrada à procura de um tempo artúrico.